quarta-feira, 30 de outubro de 2019


ARTE CONTEMPORÂNEA...

O que é afinal, Arte Contemporânea? Para mim, um conceito a se pensar já que a palavra “contemporânea” pode se referir ao que é ou foi do mesmo tempo, da mesma época e pode, portanto estar distante de nós, como Leonardo da Vinci e Michelangelo ou Aleijadinho e Mestre Athaide. Mas “contemporâneo” também se refere ao nosso tempo, ao que estamos vivendo, vendo e convivendo aqui e agora!
Fig. 1: A Escola de Atenas, 1509 a 1511 – afresco – 5m x 7,7m – Vaticano – Roma – Rafael de Sanzio

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_de_Atenas#/media/Ficheiro:Escola_de_Atenas_-_Vaticano_2.jpg

Ou seja, a Arte Contemporânea contempla tudo o que se está produzindo nesta época, neste momento histórico, desde desenhos clássicos até o estudo de linhas coloridas ou não, finas ou grossas e em diferentes posições num suporte que não necessariamente precisa ser o papel, por exemplo. Contudo essa nova maneira de produzir arte precisa de um novo olhar para apreciá-la.
Como explica Couquelin, a arte agora é um sistema, um ‘Estado Contemporâneo’, ou seja,

significa que esse sistema não é mais o sistema que prevaleceu até recentemente; ele é o produto de uma alteração de estruturas de tal ordem que não se podem mais julgar nem as obras nem a produção delas de acordo com o antigo sistema. (2005, p. 15)

Não compete a mim saber qual nome se dará daqui a algum tempo, uns 50 anos ou menos, para tudo o que está sendo produzido, dentro deste momento contemporâneo. Até porque já não mais estarei por aqui. Mas creio que posso contribuir para amenizar a antipatia que causa em muitos quando se fala da Arte Contemporânea.

A Arte Contemporânea ficou e continua sendo estigmatizada como algo estranho, de difícil compreensão e, talvez, individualista, para muitos. Como em todos os períodos históricos há uma produção de alta qualidade e outra, nem tanto, na visão atual. Porém essa arte não tão aclamada agora daqui a alguns anos poderá requerer sua qualidade, seu feito histórico.
Voltemos no tempo e pensemos no Barroco do séc. XVII na Europa. Este estilo foi recebido como algo exagerado, disforme, dramático ao extremo e seu pomposo nome de hoje surgiu, segundo alguns estudiosos, justamente por se tratar de algo rude em comparação ao Renascimento, que era clássico, equilibrado, científico, feito com cores suaves e dentro de proporções corretas desenvolvidas com muito estudo (fig. 1).

Para começar, a origem da palavra Barroco, segundo o dicionário etimológico online, vem

Do francês boroque, que significa “irregular”.
Existem diversas hipóteses sobre a real origem do termo “barroco”.
Alguns etimologistas acreditam que a palavra tenha se originado a partir do grego baros, que significa “pesado”, enquanto outros defendem a ideia do surgimento a partir do italiano barocchio, que quer dizer “engano” ou “fraude”.
No entanto, a versão mais aceita sugere que tenha aparecido na língua portuguesa a partir da versão em espanhol berrueca ou do francês baroque, que teriam sido evoluções do latim verruca, que significa “verruga” ou “irregular”.
Na língua portuguesa, barroco é uma pedra irregular granítica ou uma pérola de forma irregular. Esta palavra aparece com esta definição no dicionário da língua portuguesa desde o século XVII.
No século XVIII, a palavra barroco começou a ser associada a tudo o que era irregular, extravagante ou desigual, principalmente em referência às obras artísticas que surgiram após o período do Renascimento.

Pois é, o Barroco também não era nada gracioso para aqueles que foram seus contemporâneos. Mas deu um pouco (eu disse um pouco) mais de liberdade para trabalhar a cor, experimentar o que havia de novo, distorcer a perspectiva central e científica, desequilibrar a imagem, visto que a vida estava incerta, na época, com a Contrarreforma.

Caravaggio (fig. 2), por exemplo, foi um gênio na criação de cenários para pintar o mais realisticamente possível as imagens encomendadas pela Igreja Católica e pelos colecionadores da época. Trabalhava com modelos vivos num grande palco que montou num dos seus ateliers, criando até mesmo maneiras de utilizar a luz para dar dramaticidade as cenas que compunha. Deu sua contribuição inclusive para o teatro, o cinema e a TV.

Foi totalmente oposto ao equilíbrio dado às obras pelos renascentistas, o que faz sentido, visto que o artista de qualquer momento histórico está antenado com sua época e pensa além dela.

Fig. 2: Vocação de São Mateus, 1599 ou 1600 – óleo sobre tela – 3,22 x 3,40m – San Luigi dei Francesi – Roma – Michelangelo Caravaggio

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Calling_of_Saint_Matthew_by_Carvaggio.jpg



Caravaggio mostrou um mundo em movimento, em mudança. Bem oposto ao classicismo trazido pela linearidade do Renascimento. E houve uma época em que a produção Renascentista e Barroca foram contemporâneas, até a segunda sobrepujar a primeira. Inclusive entre ambas houve o Maneirismo que ajudou nesse período de transição. Uau! Quanta contemporaneidade!!!

Contudo uma nova arte exigiu um novo olhar. Sabemos que qualquer tipo de mudança gera um período de estresse, de negação, até de um certo horror, pois o mundo equilibrado que se pensa viver vira de cabeça para baixo.

Qualquer semelhança não é mera coincidência. A História nos mostra isso. E nunca podemos isolar o artista do tempo em que está inserido, podemos isolá-lo de nomes dados a estilos e movimentos. Aliás, hoje não temos mais esta divisão entre estilos ou movimentos, pois os artistas trabalham suas ideias individualmente dentro de técnicas semelhantes, como no caso do Grafite.

É preciso lembrar que a contemporaneidade traz materiais diferentes, tecnologias a serem exploradas, suportes diversos, junto com todos os materiais já desenvolvidos e existentes até então. Tinta a óleo, carvão, lápis grafite, aquarela, guache, gravura, mármore, bronze, madeira, ganharam novas aplicações e se uniram aos jovens como tinta acrílica, silicone, peças de carro, isopor, EVA, vídeos, plástico, recicláveis em geral, objetos e imagens prontas e até esterco de elefante!

O artista tem liberdade para criar com o que tem em mãos. É um trabalho árduo, de pesquisa, experiência, introspecção. Este PROFISSIONAL pode questionar a forma, a cor, ambos, a sociedade, a si mesmo, a religião, a política. Pode desafiar a física, o tempo, a tecnologia. E tudo isso nos afeta diretamente, pois se antes havia o certo e o errado, hoje não mais existe.

Coloquei a palavra profissional em caixa alta porque ainda se pensa que o artista ou é meio lunático ou que recebe alguma entidade. Trago isso em respeito aos artistas e a todas as religiões que acreditam ou não nas entidades. Tivemos artistas como a sueca Hilma af Klint que produzia segundo ordens ocultas. Mas isso será, quem sabe, assunto para outra publicação. O que é importante frisar aqui é que artista é um profissional como qualquer outro. O que já expliquei no texto anterior.
Voltemos ao tema.

Pense comigo, se eu me sinto afetado por algo é porque não o entendo. E para entendê-lo eu preciso mais do que um manual, preciso abrir minha mente. Nenhum radicalismo é inteligente e minha opinião não é a única nem a totalmente correta, se é que está correta ou o foi em algum momento.

Talvez o mais importante da Arte Contemporânea não seja discutir seu valor monetário. Por que, por exemplo, o “Tubarão”, de Damien Hirst conservado em formol, foi vendido por 6,5 milhões de libras (hoje, cerca de 8,32 milhões de dólares)? Sendo que ele foi substituído por outro, já que o original entrou em decomposição? Talvez melhor seria perguntar O QUE esse tubarão conservado em formol pode nos dizer a respeito de como tratamos tais animais, o oceano e até mesmo a vida marinha em geral entre outros questionamentos que nos façam ver além de um tubarão morto dentro de uma caixa transparente.

Tubarão, Damien Hirst ( - Coleção Particular
Título original: The Physical Impossibility Of Death In the Mind Of Someone Living
(Impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo)
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/transfigurar/2012/04/hirst-o-tubarao-e-a-arte-segundo-arthur-c-danto.html - acesso em 30 out 19

Pintar um tubarão seria mais fácil do que conservá-lo com aparência de vivo por muitos anos. Porém, agora vale mais a ideia do que o material e nem sempre o artista faz a obra, mas a projeta. Exatamente como no Renascimento. Ou você pensa que Rafael pintou todos aqueles murais sozinho! Quanto aos tubarões, eles ainda morrem sem suas barbatanas pelos oceanos afora em prol da vaidade humana e sustentando famílias

Usando e abusando do Renascimento como exemplo, doce ilusão quem pensa que todos tinham acesso às obras mitológicas da época. Elas eram feitas para uma elite que sabia ler e tinha acesso à mitologia e isso os tornava diferentes das outras classes. Hoje babamos por elas. São realmente belíssimas e cheias de simbologia, assim como as obras feitas neste nosso momento. Assim como o Tubarão de Hirst. Mesmo as obras mitológicas do renascimento requerem estudo, pois não sabemos que deuses e deusas são e muito menos o que queriam dizer para a época.

Sempre falei e falo para meus alunos que toda obra é fofoqueira. Basta você conversar com ela que ela te responderá alguma coisa ou te fará perguntas. É como uma paquera. Mesmo um “Quadrado negro sobre fundo branco”, de Malévich tem muito, mas muito a nos contar sobre suas ideias, sobre o cheio e o vazio, sobre o cosmos.

Quadrado negro sobre fundo branco1918 – óleo sobre tela – State Russian Museum – Kasimir Malevich

Picasso teve medo de expor sua “Senhoritas de Avignon” de 1907, pois sabia que os olhares não estavam prontos para ela. Vendeu-a para um alfaiate porque sua mulher, na época, não queria ver aquela “aberração”. Hoje é venerada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Ela é muito mais que cinco prostitutas, do que mulheres mascaradas! Ela nasceu de um estudo de aproximadamente 750 desenhos!

Les Demoseiles de Avignon, 1907 – Museu de Arte Moderna de Nova Iorque – Pablo Picasso
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Les_demoiselles_d%27Avignon – acesso 30 out 19


Procurei trazer exemplos de obras e artistas que inovaram e inicialmente os olhares se voltaram contra eles. Poderia ainda citar os impressionistas, os surrealistas, os dadaístas e muitos outros. Todos nos ensinaram e ensinam a ter um olhar diferente sobre as obras, a sociedade, a técnica e sobre o próprio artista e sua visão de mundo.

Eu pergunto, então, como olhar uma obra hoje se a contemporaneidade nos trouxe uma pressa nunca vista antes? Pense, se não temos “tempo” de conversar com um amigo, imagina com uma obra de arte! Porém, vale lembrar que o que nos torna diferentes dos outros seres é justamente este diálogo com nossos amigos e com as artes, sejam elas as visuais, a música, a literatura, o teatro, a dança, o cinema...

Para finalizar, gostaria de frisar que uma nova arte necessita de um novo olhar despido de conceitos e preconceitos, de dogmas, de radicalismo, de antipatia. Não precisamos gostar, contudo precisamos compreender para respeitar. Também se faz necessário entender que uns nasceram para criar arte outros para apreciá-la, mas todos nascemos para pensar o mundo e tentar fazê-lo melhor!


Referências

BARROCO. Disponível em https://www.dicionarioetimologico.com.br/barroco/ - acesso 24 out 19
CARAVAGGIO, Michelangelo. A Vocação de São Mateus. Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Calling_of_Saint_Matthew_by_Carvaggio.jpg – acesso 24 out 19
COUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. Trad. Rejane Janowitzer. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
HIRST, Tubarão. Disponível em http://lounge.obviousmag.org/transfigurar/2012/04/hirst-o-tubarao-e-a-arte-segundo-arthur-c-danto.html  - acesso 30 out 2019
MALEVICH, Kasimir. Quadrado negro sobre fundo branco. Disponível em:  https://pt.wikipedia.org/wiki/Suprematismo#/media/Ficheiro:Malevich.black-square.jpg – acesso 30 out 19
PICASSO, Pablo. Les Demoseiles de Avignon. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Les_demoiselles_d%27Avignon – acesso 30 out 19
SANZIO, Rafael. A Escola de Atenas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_de_Atenas#/media/Ficheiro:Escola_de_Atenas_-_Vaticano_2.jpg – acesso 24 out 19

11 comentários:

  1. "Pensar o mundo e tentar fazê-lo melhor". Essa frase é tão contemporânea que dói na alma.
    Parabéns Miriam pela sua trajetória intelectual e pela sua generosidade em compartilhá-la.

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    1. Obrigada, Angela! Partilhamos da mesma dor na alma, não é mesmo? Não sei se chamaria de generosidade, mas sinto que preciso partilhar! abraço carinhoso!

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  2. Muito bom Mirian.Falar da Cultura eleva a alma. Faz bem a quem divulga e a quem recebe. Bj

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  3. Maravilhoso texto. Como sempre muito conhecedora do que escreve. Que leitura gostosa..acessível.. Parabens!

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    1. Fico feliz que seja acessível! Pois o que mais quero é que as pessoas não se sintam distantes da arte, produção humana para humanos ;). Redundante, mas verdadeiro! bjs

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  4. Obrigada Miriam, por compartilhar conosco essa maravilhosa análise!

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    1. Obrigada por dar retorno a respeito do que escrevo! Procurarei sempre melhorar!!! bjs

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  5. Uauuuu Miriam, que aula! Arte Contemporânea é realmente um caso a parte...rsrsrs. As vezes, o que é belo pra mim, para outra pessoa não o é...o que me provoca, o que me questiona, por vezes, pode passar desapercebido para outros...enfim, arte é vida, é alma pulsante, que só vê e entende, quem está pronto para tal....meu sonho é ter olhos, coração e alma, sempre abertos para esses sentimentos. Obrigada por me instigar mais um pouquinho!!!

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  6. Você me provocou para um tema interessante "o belo"! Obrigada a você por ler meus textos e dar sua opinião! bjs

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  7. Uhuuu...aguardando anciosa! Esse é, daqueles assuntos, que dão pano pra manga! Rsrs

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